O idiota

Dolores Flor
Publicado em 17 de Setembro de 2025 ás 21h 08min

O idiota: quando a pureza se torna espelho da humanidade

Há romances que atravessam o tempo como um sussurro persistente. O Idiota, de Fiódor Dostoiévski, é um desses livros que, publicado no século XIX, continua a pulsar nas inquietações do presente. A figura do príncipe Liév Míchkin, com sua ingenuidade quase infantil e bondade inquebrantável, surge como um paradoxo: ele é visto como “idiota” justamente porque insiste em ser humano demais em um mundo que celebra a esperteza, a dureza e a indiferença.

 

Na trama, o príncipe retorna à Rússia após anos de tratamento, e seu coração transparente se torna objeto de estranhamento. Para uns, é motivo de riso; para outros, de suspeita; para alguns poucos, de amor. Em torno dele gravitam personagens que carregam as marcas da paixão, da culpa e da obsessão — como Nastasya Filíppovna, fragmentada entre o desejo de redenção e o impulso autodestrutivo, e Rogójin, que transforma o amor em possessão até o limite da violência.

 

O romance se ergue como uma grande alegoria da dualidade da alma humana. No príncipe Míchkin, vemos a inocência que deseja salvar; em Nastasya, a culpa que impede de ser amada; em Rogójin, a paixão que consome; em Aglaia, a promessa de equilíbrio que não se realiza. Cada personagem encarna uma força contraditória: redenção e ruína, amor e obsessão, compaixão e vaidade. É nesse embate que Dostoiévski nos revela que a alma humana não é uma linha reta, mas um campo de tensões.

 

E a sociedade em volta? Preocupada com prestígio, fortuna e convenções, ela não sabe o que fazer com a pureza. A bondade sem máscaras incomoda, pois denuncia a falsidade dos gestos sociais. Assim, o romance nos provoca a pensar: até que ponto a pureza é força, e até que ponto é fragilidade? Será que a humanidade prefere a mentira confortável à verdade desarmada?

 

O ápice da narrativa — o assassinato de Nastasya por Rogójin e o colapso de Míchkin — simboliza mais que um desfecho trágico: é a demonstração de que, quando a pureza encontra o mundo, quase sempre sai crucificada. Míchkin, incapaz de odiar até mesmo o assassino, permanece fiel à sua essência, ainda que essa fidelidade o condene à exclusão.

 

É justamente essa contradição que mantém o romance atual. Hoje, como antes, vemos como a compaixão pode ser confundida com fraqueza, como a sinceridade pode ser ridicularizada, como a inocência pode ser esmagada pelo peso da conveniência social. Ainda convivemos com Rogójins e Nastasias, com paixões intensas que não sabem se equilibrar, com sociedades que premiam a esperteza e marginalizam a bondade.

 

O Idiota não nos entrega respostas prontas, mas nos deixa diante de uma pergunta perturbadora: quem é, afinal, o verdadeiro idiota? Aquele que insiste em ser bom, mesmo esmagado pela realidade, ou aqueles que, em nome de sobreviver, sacrificam a própria alma?

 

Talvez esteja aí a força eterna da obra: ao chamar de “idiota” o homem que se recusa a deixar de ser humano, Dostoiévski denuncia a lógica invertida do mundo. Sua mensagem ressoa até hoje: a pureza pode ser ridicularizada, mas é ela que ainda guarda a centelha daquilo que nos torna verdadeiramente humanos.

 

DOSTOIÉVSKI, Fiódor. O idiota. Tradução de Boris Schnaiderman. São Paulo: Editora Abril Cultural, 1979.

Fonte: Agência Literária

Comentários

Que bela reflexão lindíssimo adorei parabéns sucesso

Maria Lurdes | 17/09/2025 ás 21:37 Responder Comentários

Ser idiota muitas vezes é ter a lucidez que muitos evitam. Como muito bem descreve Voltaire "Ser feliz é cultivar o próprio jardim".

Manoel R. Leite | 17/09/2025 ás 21:51 Responder Comentários

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