A Infância que Carrega o Mundo nas Costas
Crônicas | Carlos Roberto RibeiroPublicado em 21 de Maio de 2025 ás 18h 43min
Era para ser um brinquedo de madeira puxado por cordas, rodando pelas vielas de uma infância simples, como em qualquer lugar do mundo. Mas não. Na Faixa de Gaza, a madeira virou carroça improvisada, as cordas viraram cabos de sobrevivência e a infância virou fardo — como mostra a imagem que denuncia o silêncio do mundo. Uma criança, franzina e descalça, puxa com as mãos pequenas uma carroça carregada de irmãos, colchões e os escombros do que antes era um lar. Atrás dela, o cenário é de guerra: prédios dilacerados, paredes estraçalhadas e nenhuma árvore para dar sombra ou esperança.
Essa imagem não é ficção nem exagero. É um retrato visceral de um povo esmagado entre foguetes, bloqueios e a indiferença da comunidade internacional. O campo de refugiados de Jabalia, ao norte de Gaza, foi mais uma vez reduzido a pó, como tantos outros espaços palestinos, alvos da brutal ofensiva israelense. E enquanto governos redigem notas ambíguas, escondendo o genocídio atrás da palavra "conflito", essa criança continua andando — como se, em cada passo, estivesse tentando puxar não só os irmãos, mas todo um povo para fora do abismo.
A grande mídia, cúmplice em sua omissão seletiva, escolhe não mostrar. Para ela, os corpos infantis em sacos pretos, as mães com os filhos nos braços soterradas sob ruínas, os homens tentando cavar com as unhas o que resta da dignidade humana — tudo isso é uma estatística incômoda demais para entrar no noticiário. A narrativa oficial é cuidadosamente higienizada, protegendo os interesses dos que lucram com a guerra e demonizando os que gritam por vida.
Mas as mídias independentes, jornalistas livres, e as redes populares insistem em romper o cerco do silêncio. São elas que nos entregam essa imagem: uma criança em Gaza fazendo o que nenhuma criança deveria fazer — liderar um êxodo, puxar os escombros de uma guerra que ela não iniciou, carregar irmãos em meio à lama e destruição. Não há tanque, drone ou míssil que justifique isso. Nenhuma lógica de “autodefesa” pode validar o assassinato sistemático de civis.
O que Israel está fazendo não é defesa — é massacre. É punição coletiva. É limpeza étnica com aplausos discretos de quem lucra com a ocupação. É genocídio em tempo real, transmitido pelas margens da internet, onde o algoritmo tenta apagar o clamor palestino, mas não consegue abafar a verdade que explode em cada imagem como esta.
Talvez, no futuro, os livros de história perguntem onde estávamos. Onde estava a ONU, onde estavam os intelectuais, os artistas, os líderes religiosos, os educadores, os poetas. Talvez alguém pergunte por que o mundo deixou uma criança arrastar os destroços de sua vida sem fazer nada. Talvez respondamos, envergonhados, que estávamos ocupados demais discutindo geopolítica enquanto a humanidade morria em câmera lenta.
Mas hoje, aqui e agora, essa crônica é um ato de memória. Um grito contra o esquecimento. Uma reverência à resistência de um povo que ainda encontra forças para sonhar com liberdade, mesmo quando o céu parece cuspir fogo. Que essa criança, puxando seus irmãos entre a lama e as ruínas, nos ensine mais sobre coragem do que todos os generais juntos.
Porque se o mundo tem salvação, ela estará nas mãos pequenas e firmes dos que resistem — mesmo quando tudo desaba.