A segunda Revolução

Contos | 2025 - OUTUBRO - Sussurros da noite: contos e poemas de mistérios | Gilmair Ribeiro da Silva
Publicado em 29 de Junho de 2025 ás 21h 26min

                                           A SEGUNDA REVOUÇÃO

 

A centenária fazenda Santa Mônica, que subsistiu a revoluções e levantes e se manteve de pé diante das turbulências da transição do regime imperial para o republicano, carregava consigo importância histórica e social. A razão de sua própria existência era preservar segredos e histórias que ultrapassaram as barreiras do tempo — histórias que habitavam o imaginário e pareciam eternas. No entanto, nos tempos modernos, enfrentaria um levante inusitado e inesperado que abalaria suas estruturas.

O descontentamento era geral entre os animais biologicamente pertencentes a famílias e ordens distintas. O abandono das atividades, a falta de zelo, e o descompromisso com investimentos era público e notório; e isso colocava em risco a reprodução e a continuidade da vida das espécies.

A fazenda com toda a sua extensão, não era uma comunidade única, os animais, como em toda sociedade, incluindo a humana,  viviam cada  qual no seu mundo, reunido entre suas espécies, não havendo entre eles a ideia de coletividade e um compromisso de unidade que pudesse colocar em pauta uma discussão em defesa da vida, da prosperidade, da harmonia social e da busca coletiva pelo  bem comum.

Mas naquela tarde ensolarada de domingo, no pátio da fazenda, localizado logo após a residência principal, onde compareceram animais representantes das espécies ali habitadas, tudo mudou. Naquele momento foi firmado um compromisso de unidade e a construção de ideal de desenvolvimento sustentável, defesa da vida, e liberdade, na busca coletiva de um bem comum, como narrado no primeiro documento elaborado:

Tomando a palavra, o porco mais velho (os porcos eram os mais sábios e intuitivos dos animais) narrou: “Num tempo não muito distante, o visitante que se aproximava da cidade, do alto, se surpreendia com a vista das residências preservadas em estilo colonial. A própria casa principal era um palacete que evocava a beleza e opulência do período colonial. Isso chamava a atenção do visitante e atraía turistas, tornando a fazenda Santa Mônica um dos principais pontos de visitação — parada obrigatória para quem vinha à região.”

- E agora, irmãos, o que temos? O que somos?

- A falta de alimento tem afetado a vida, diminuído a procriação, a ponto de que em alguns anos não teremos mais descendentes para contar a nossa rica história, enquanto isso, tudo que produzimos vai para o enriquecimento dos proprietários que nos tem abandonado.

- Estamos aqui hoje para tomarmos uma decisão definitiva e histórica – concluiu bradando os braços para o ar.

Explodiram aplausos e embora não soubessem ainda o que poderiam fazer o apoio foi maciço e unânime à liderança do porco mais velho – estava posta as bases para uma revolução.

Havia comentários — e não eram poucos, embora ninguém soubesse ao certo — de que a propriedade fora adquirida ainda na época das capitanias, passada de pai para filho, geração após geração. Ali, de fato, havia marcas do passado. Em uma área reservada, de tempos em tempos, eram expostos instrumentos e objetos utilizados por feitores durante o período da escravidão, além de fotografias dos tempos do colonialismo.

Dizia-se que os atuais proprietários estavam envolvidos com a política; aproximavam-se as eleições e um deles era candidato à deputado federal e, em virtude do fato de que não desejava qualquer repercussão negativa envolvendo os negócios da família, segundo a análise da comunidade suína, esse era o momento propício para uma rebelião libertária.

Tomando a palavra pela primeira vez, o jumento Inominável — que era chamado assim porque identificava seus filhos cronologicamente como 01, 02 e 03 — discursou:

“Nos tempos áureos, toda a extensão da fazenda se dividia em setores: criação de cavalos de raça, também bovinos e suínos voltados para exportação — com destaque para o agronegócio e a pecuária, com farta alimentação para as espécies. Mas tudo isso ficou no passado. Hoje, a fazenda sobrevive graças a financiamento público e generosas isenções fiscais — artimanhas de quem sabe se aproximar do poder e atuar em lobbies que garantem o proveitoso acesso ao dinheiro público.”

“E nós... onde entramos nisso?!”

Até então, os animais não estavam acostumados à interação entre grupos distintos, embora houvesse consciência das diferenças de comportamento de alguns diante das dificuldades enfrentadas — fruto do tratamento diferenciado dado a determinados grupos.

Um exemplo claro era o dos jumentos. No passado, eram numerosos; agora restava apenas uma família. Esses, por não terem obrigações, viviam soltos e livres em seu ambiente. Ainda assim, tinham mais proximidade com os três funcionários que cuidavam da fazenda — deles recebiam afagos e boa alimentação. Por conta disso, os jumentos precisavam ser convencidos a fortalecer a ideia revolucionária.

Já os porcos, havia muito tempo, não enfrentavam mais a ameaça do abate para produção externa. A exemplo dos jumentos, eram os únicos com alimentação farta, pois recebiam os restos das farras ocorridas nos fins de semana pelos funcionários. Diferiam dos demais animais por serem espertos e adaptados aos novos tempos — sabiam tudo o que os homens faziam e gostavam. E foi da comunidade suína que nasceu o ideal libertário e a crença de que poderiam lutar pela emancipação, formando uma república livre da opressão dos humanos.

Os demais animais viviam em extrema dificuldade, mas não tinham consciência de classe. Um exemplo ilustrativo era o dos burros — grupo que formava a maioria, com 32% de todos os animais. Eles próprios, como diriam os porcos, “por serem burros”, não se incomodavam com a situação. Desde que houvesse uma cocheira para descansar, algo diário para comer, sal para lamber e um afago ao fim do expediente, enfrentariam todo o trabalho de carga sem reclamar. Estes não tinham discernimento algum: diziam que cumpriam seu destino — “burro é feito para trabalhar duro, comer e dormir”.

A segunda reunião foi marcada e aconteceu na semana seguinte. Os porcos, por serem mais instruídos, haviam aprendido — imitando os homens — a ler, escrever e discursar. Contaram a todos a fantástica história de uma certa revolução ocorrida no passado, que apenas não dera certo porque alguns revolucionários abandonaram os ideais e aderiram à tirania. Mas agora, não! Todos lutariam juntos por um mesmo ideal: a revolução pela liberdade plena e por direitos iguais para todos. Houve lágrimas e apoio por aclamação.

Baseando-se na primeira revolução, os porcos temeram a rejeição. Para se diferenciarem daquilo que já era de conhecimento de todos — graças à própria narrativa suína em encontros setoriais —, estabeleceram, naquele momento, a figura de um líder revolucionário: o Inominável, jumento mais velho, como chefe da revolução. Uma espécie de “testa de ferro”.

Ficou estabelecido também, em assembleia, que os porcos formariam o “Exército da Resistência”. Na chefia do exército estaria o porco mais velho, agora chamado de General, e a segurança ficaria a cargo de seus fiéis servidores: o porco Soldado e o porco Cabo.

Dada a urgência e a dificuldade de criação de símbolos próprios, decidiu-se ainda que seriam usadas as mesmas cores, bandeira e hino utilizados pelos humanos em ocasiões especiais — com o hasteamento da bandeira e o canto do hino ao pôr do sol.

O jumento “03”, até então um desconhecido, aproveitando a popularidade do pai, marcou presença no evento, apresentando, pela primeira vez, sua retórica revolucionária:

— Amigos, para que a revolução seja vitoriosa, basta tomar a fazenda, prendendo os três funcionários que habitam a residência oficial. Para isso, bastam as ações do Cabo e do Soldado.

Foi demoradamente aplaudido. Os burros, os mais efusivos apoiadores da primeira hora da revolução, exclamavam entre si: “Os jumentos são dos nossos!” — firmando lealdade.

Os porcos logo providenciaram, de maneira clandestina, chaves do portão de entrada e das portas da residência oficial, passando a monitorar os três funcionários — tanto pelas redes sociais, já que eram descuidados e deixavam os computadores ligados, quanto pelos locais que frequentavam diariamente.

Eles sabiam, de antemão, que os funcionários da fazenda, de sextas a domingos, passavam as noites na jogatina, acompanhados de muita bebida e boa comida, caindo nas camas bêbados ao amanhecer e despertando somente ao entardecer.

Foi nesse contexto que, na madrugada de domingo, os funcionários foram dominados pelos porcos e subjugados pelas próprias armas que, até então, portavam. Como os suínos sabiam usar redes sociais e tinham conhecimento de que os proprietários, por serem envolvidos em política, não desejavam escândalos nem repressão com matança explícita, anunciaram-lhes a revolução e o ideal libertário.

Os proprietários, para ganhar tempo — preocupados com as eleições —, aceitaram as condições provisórias, negociando a soltura dos funcionários sem repercussão na imprensa. E assim foi feito. A fazenda estava em festa. A revolução era vitoriosa.

E o governo revolucionário foi instalado.

O jumento Inominável, mal se sentou na cadeira da residência oficial e, aconselhado pelos porcos, descumpriu logo a primeira promessa — um dos pilares da rebelião —, que previa um representante de cada espécie como auxiliar direto da administração. Influenciado pelos suínos, determinou que o exército e a segurança ficariam sob responsabilidade dos porcos, e que os demais cargos da administração, para evitar traições, seriam ocupados pelos burros (apoiadores cegos) e pelo gado, cuja obediência bastava ser acionada pelo som do berrante e uma voz de comando.

Houve descontentamento entre as demais espécies.

Em seguida, ao invés de partilhar a produção entre as espécies, como prometera, o novo governo determinou que toda a produção seria apresentada à administração, que providenciaria a venda. Alegava-se a necessidade de recursos para manter a defesa e comprar armamentos, pois, no mundo capitalista, não importa de onde vem a negociação ou como se dá a produção — o que importa é o lucro e a vantagem. Assim, desenvolveu-se um sistema de negociação com fornecedores e compradores.

Meses se passaram. Diante do descontentamento da maioria das espécies, a administração perdeu apoio, sendo reconhecida apenas pelos burros e pelo exército dos porcos, que, fortemente armados, passaram a subjugar os opositores da administração central. Quem criticava era ameaçado de prisão ou morte — práticas que os humanos, anteriormente, não empregavam.

Os jumentos agora não queriam mais andar sobre quatro patas, usavam chapéus, portavam armas de fogo, bebiam cerveja e jogavam baralho até o amanhecer. Diante da falta de insumos, cuidados e da precariedade alimentar, a produção caiu drasticamente, e todos viviam em miséria extrema.

— “Não há liberdade e autonomia com fome” — diziam os animais.

Terminadas as eleições, o proprietário-candidato foi eleito. Diante da desorganização e despreparo da alimária administrativa, numa certa madrugada, a fazenda — enquanto os jumentos, cansados da jogatina e embriagados, dormiam sobre as mesas de jogo — foi invadida por seguranças armados. Prenderam primeiro o Cabo e o Soldado e, depois, o General, obtendo em seguida a rendição do jumento Inominável, que, na calada da noite, tentava negociar uma anistia a ele e aos filhos para assegurar os privilégios anteriores.

A grande maioria dos animais se rendeu e aceitou a volta da velha ordem, pois, segundo diziam, “a miséria não é boa conselheira”.

Mas os burros, como diziam os porcos, por serem burros, haviam jurado fidelidade cega. Estes, então, quebraram o portão central e tentaram invadir a residência oficial como forma de resistência, mas foram dominados e, ato contínuo, presos num pasto anexo à fazenda, fortemente cercado e vigiado.

E foi assim que a segunda revolução terminou, deixando explícito para todos quem era homem, quem era jumento e quem era burro.

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