PREDESTINADOS

Contos | Eidi Martins
Publicado em 30 de Janeiro de 2022 ás 14h 20min


Eu os vi algumas vezes, poucas vezes
mesmo. Mas ouvi tantas vezes a história de
como tudo aconteceu que posso contar como
se fosse minha. "19 de outubro de 1964, lá
pelas bandas da Bahia, ele nascia. Ela ainda
demoraria nascer. Ele teve sua infância
humilde típica de uma família grande do
Nordeste, 12 irmãos ao todo, todos criados.
Ouvi dizer que ele era o mais cobiçado dos
irmãos. E eu concordo, mesmo não estando
lá, concordo pelo que já vi.
Estudou pouco, apenas para aprender
o básico, começou a trabalhar cedo, primeiro
na lida da roça com seu pai e irmãos com um
toquinho do que sobrava da lâmina da
enxada, não aguentava muita coisa, mas ia
pra roça, pra formar um homem, como dizia
seu pai, mais tarde na sua juventude
trabalhou para seu próprio sustento. E
namorou, tantas vezes que não conto nos
dedos de minhas mãos. E decepcionou-se
também, tanto que ele chorou. Isso ouvi dele
próprio.
19 de outubro de 1983 completou seus
19 anos e viveu até esse dia experiências
únicas. Iniciava o ciclo de mais um ano sem
imaginar que no dia seguinte, 20 de outubro
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de 1983, ela nasceria. Dela? Ouvi muito
também. Sei contar da vida dela. Como já
disse, nasceu aos 20 de outubro, exatamente
19 anos depois dele, corrigindo, 19 anos e um
dia, como ouvi ela frisar uma vez.
Teve uma infância simples, mãe
professora, pai agricultor, uma criança
escolhida para viver, como sua mãe sempre
disse, sei que ainda pequena, antes do
terceiro aniversário, teve uma saúde muito
delicada, e acreditem em uma celebração ela
foi oferecida a Nossa Senhora Aparecida e sua
saúde restabelecida. Toda vez que ouvia essa
parte eu me arrepiava e me arrepio ainda só
de lembrar.
Ela cresceu e também teve suas
vivencias e amores. Acredita que ele a pediu
em casamento quando ela tinha 9 anos, sério.
Claro que naquela época não era de verdade.
Mas algum anjo escutou e anotou, com
certeza. É claro que na inocência de criança
ela não aceitou.
— Ô menina, você quer casar comigo?
— Eu não, você é muito velho pra
mim."
Essa foi à rápida conversa entre eles
enquanto ela brincava com a irmã sentada na
terra, em frente a sua casa. Ela tinha 9 anos.
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E virou uma adolescente, enquanto ele na sua
vida também seguia, trabalhando e já no
segundo casamento. Pois é, não quero falar
sobre os motivos dos fins dos casamentos
dele. Porque envolve outras pessoas e aqui
não quero falar delas, só quero falar dos dois.
Só posso dizer que ele não teve toda culpa.
Sempre ouvi isso também. E acredito nisso.
10 anos se passaram. E não é que
aquele anjo que fez a anotação resolveu
juntar as linhas do destino dos dois. Você já
ouviu falar da história da linha vermelha que é
amarrada no dedo mindinho das almas
gêmeas quando elas nascem, acho que foi
isso que aconteceu. Bom o anjo entrou em
ação no aniversário de 18 anos dela, em uma
festinha que os amigos fizeram, ele apareceu.
(...)
— Por quê?
— (...) Ele era amigo da família uai.
Foi ali que começou. Na verdade, ela se
aproximou dele pra ajudar outra pessoa que
estava a fim dele. Mas ele não tinha a mesma
intenção da pessoa. E essa proximidade foi
dando forma aos planos do anjo. E como num
estalar de dedos, sabe quando você dorme
um pouco no filme e quando acorda algumas
coisas na vida dos personagens já
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acontecerão e tudo fluiu simplesmente e
perfeitamente se encaixou, foi assim
exatamente quando ela completou seus 19
anos, exatamente 19 anos depois, eles
estavam juntos, incrível neh. Algumas vezes a
ouvi contar essa história de amor. E quando
ela terminava de contar todo o enredo ela
fazia um resumo assim.
Nossa história se resume assim:
— Ele nasceu, viveu 19 anos de sua
vida, se preparando pra mim. Eu nasci, vivi 19
anos de minha vida me preparando pra ele,
pra gente finalmente poder se encontrar de
fato."
Um detalhe curioso é que todas as
datas importantes deles tem o número 8. Não
sei, pode ser alguma coisa também, dizem
que esse é o número do infinito. Como eu já
disse, eu já os vi algumas vezes, e eu senti o
amor entre eles, fluindo quase palpável. E o
que sei é que nesse momento eles estão
vivendo.
— Eu tenho uma curiosidade. E quando
fechar o ciclo dos 19 anos. Você também
pensou nisso?
— Eu já.
 Publicado na Antologia de Escritores Contemporaneos, categoria Contos. Valter Figeira e Convidados. (2021)

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