O Canto do Pássaro Branco além dos voos rasteiros

Contos | 2025 - AGOSTO - Ventos do tempo: Memórias e despedidas | Gilmair Ribeiro da Silva
Publicado em 27 de Julho de 2025 ás 16h 09min

Foi num passado distante, como diriam os avôs: “nos tempos antigos”, havia uma pequena comunidade — daquelas que um escritor de literatura latino-americana chamaria, elegantemente, de aldeia.

Nessa comunidade habitavam animais de espécies distintas, que concebiam uma harmoniosa organização social. Era, na verdade, uma sociedade alicerçada nas bases da ingenuidade e das tradições, com fortes laços com o passado, transmitidos às novas gerações pela oralidade — e nenhum vínculo com o futuro, pois desconheciam outros tipos de organização social ou possibilidades de vida.

Nenhum ser pertencente àquela comunidade havia sequer ultrapassado o mar ou buscado, no espaço azul do céu, o vislumbre de novas experiências que revelassem outra forma de vida ou uma estrutura social diferente.

A ilha era cercada pelo mar, e, em seu coração, havia um rio de águas correntes que cortava toda a sua extensão — o Rio Azul. Nas encostas, havia uma mata virgem, com destaque para os pássaros pescadores que, com seus gestos, inconscientemente, encarnavam poesias nas cores do crepúsculo.

Naquela ocasião, todos eram aconselhados pelos antigos a não adentrar a mata, pois ali havia outro universo, habitado por animais predadores e bestas feras carnívoras, que poderiam trazer a morte e a destruição à comunidade.

Os habitantes comunicavam-se apenas com um único animal da floresta: um velho lobo-guará, de olhar solitário e discreto, que, de maneira reservada, contava histórias fantásticas de seu mundo. Sua experiência não era desprezível, pois trazia novas expectativas de um universo ainda não conhecido.

Muitos o admiravam e respeitavam. Outros, nem tanto; alguns até o chamavam de mentiroso. Contudo, ainda que suas experiências não trouxessem resultados práticos, revelavam ao menos a possibilidade de amizade e de inserção em um novo mundo possível.

Certo dia, outro ser apareceu, não se sabe de onde, na comunidade. Pela facilidade de comunicação, expressividade e elegância, foi prontamente aceito como membro. Era um guaxe, pássaro de plumagem preta brilhante, com uma mancha vermelha intensa na parte inferior das costas.

Ele dizia ter vindo de outros mundos, outros universos, além da montanha, e que, em seu universo, nome não tinha importância — por isso era chamado apenas de professor. Assim como também o era o lobo-guará de olhar solitário.

Por sua maneira brincalhona, brilho nos olhos e talento para contar histórias, foi conquistando a todos e tornando-se irmão dos porcos, cavalos, burros, jumentos e aves; que paravam o que estavam fazendo apenas para ouvir suas narrativas de mundos desconhecidos.

Ambos, guaxe e lobo, sem pretensão, ensinavam uma outra forma de vida possível, sem apagar o passado ou destruir as tradições. Todos perceberam que aquilo fazia sentido, baseado num tal de conhecimento.

“Como seres tão diferentes têm histórias tão comoventes e distintas para contar?”, perguntavam todos.

— Um outro universo e uma outra possibilidade de vida é possível!
Era esse, agora, o sentimento que imperava na ilha.

Mas o mundo se fez mesmo iluminado, e a vida da comunidade modificou-se — para sempre — com a chegada de um outro habitante: um pássaro.

Logo, um pássaro? Mas este era indefinível, indecifrável — branco por inteiro, grande, com olhos aguçados como os de uma águia, e voos rasantes como os do falcão.

Veio, não se sabe de onde. Nunca explicou. O certo é que tinha uma missão: ensinar que havia um outro mundo a ser explorado, um outro universo possível.

E falava livremente sobre outros mundos; a princípio, coisas estranhas: sobre suas aventuras e prazeres; por isso mesmo, começaram a chamá-la de professora.

Ninguém, até então, sabia seu nome. Ela ensinava, desde o início, que o nome, para ela, não era importante, pois não desejava criar personalidades. O que importava, de verdade, era a ideia de coletividade, de esperança, de sonhos, de expressividade.

Por carinho, passaram a chamá-la, em muitos momentos, de Sonho, de Esperança, de Expressividade; e, ainda outros, de Literatura, porque contava histórias.

Principalmente depois do dia em que, no desenvolvimento encenado de uma narrativa, um dos pássaros chorou ao término do relato, que ensinava que: O pensamento é livre, e é preciso voar para a eternidade, além dos voos rasteiros que aprisionam a alma em horizontes curtos.

Importante frisar que, naquele tempo da história, a evolução e os conhecimentos trouxeram também questões sociais a serem resolvidas.

Ou seja, havia ainda a dificuldade de sustentar a estrutura social, harmonizando-a com a nova visão de mundo; principalmente da comunidade estudantil, que crescia.

Foi então que surgiu a necessidade de organizar verdadeiras salas de aula para estudos mais aprofundados, pois o saber agora era do interesse de todos — agora havia professores.

E, conforme as classes se organizavam, os animais ali reunidos acumulavam conhecimentos, e o avanço fazia crescer a curiosidade pela apropriação do saber sobre o mundo exterior; que era, até então, uma miragem ou conto de fadas, mas agora também a possibilidade de uma nova ordem.

Até aquele momento, os animais; principalmente os mais jovens, recebiam instruções de uma mentora: a cobra Clarissa, que, na verdade, era produto do meio e conhecia apenas e tão somente os limites da ilha.

Buscava importância ancorada numa espécie de valentia, para assim ter condições de ensinar os costumes e as tradições — que era o que sabia.

Para se fazer respeitada, intimidava a todos, discorrendo sobre seu veneno poderoso; mas ninguém a levava a sério, pois sabiam, de antemão, que se tratava de fanfarrice; pois tinham ciência de que ela era apenas uma cobra-d’água, adotada pela comunidade.

Mas a modernidade também motivou o desenvolvimento coletivo, e o advento de novas ideias impulsionou a liberdade de pensamento e argumentação.

Foi nesse contexto que se estabeleceu uma administração competente para gerenciar os negócios da ilha em prol da comunidade; que, a princípio, fora composta por um animal de cada espécie, representando a totalidade.

Logo, construiu-se um prédio para abrigar a administração, que ali viveria sustentada pelo trabalho de todos.

A raposa — velha e astuta — passou a gerenciar os negócios da ilha.

Rapidamente, aprenderam que o conhecimento não é uma poça estagnada, mas um rio de águas correntes, que exigia avanços que proporcionassem um novo saber sobre o céu, o mar, a vida além das montanhas. Ademais, o conhecimento não tem limites.

Para tanto, planejavam voos além dos rasteiros que já conheciam, o que os tornava questionadores, com boa argumentação: sobre a estrutura da escola, sobre a alimentação fornecida e, sobretudo, sobre a expectativa da vida futura e da interação com outros mundos — talvez mais desenvolvidos.

E foi nesse contexto que aconteceu o primeiro e definitivo conflito, que mudou para sempre a vida daquela comunidade:

A cobra Clarissa era composta de uma malícia além de seu tempo, que a tornava egoísta, cruel, com um senso prático afiado voltado à busca pelo poder.

Para alimentar sua busca insana e alcançar êxito em sua vaidade; principalmente por acreditar que estava perdendo o protagonismo, passou a atacar os chamados professores.

Incomodava-se, a princípio, com a ação dos dois pássaros: as cores do guaxe, por exemplo: vermelho e preto em contraste com o verde da reserva ambiental, o azul do lago e o amarelo de algumas plantas, poderiam, segundo ela, destruir os costumes e tradições e, por extensão, desestabilizar a comunidade.

E o pássaro indefinível e indecifrável, ao ensinar coisas de seu universo, poderia motivar uma revolução que apagaria as tradições e os costumes. Enfim, esse tal conhecimento era visto como subversivo e perigoso.

Como a ingenuidade causa mais divisão que unidade, a comunidade ficou dividida. Foi assim que a raposa — velha, na calada da noite, na qualidade de gestora, decidiu por seus próprios meios:

A administração tornou-se mais burocrática e, por estar sempre presa às tradições e costumes, e não acompanhar a beleza do conhecimento e da expressividade, passou a considerar a presença dos novos habitantes como revolucionária e perigosa para aquela organização social.

O pássaro indefinível, indecifrável, deveria retornar ao seu mundo, por não pertencer à comunidade.”, o mesmo devendo ocorrer com o Guaxe.

Restaria aos pobres alunos apenas a aparição esporádica do lobo-guará, que nem era da comunidade; era apenas uma referência possível, talvez uma miragem, fruto da imaginação.

 E, para se eximir da responsabilidade, a Raposa - velha culpou um tal de “Sistema”, que ninguém sabia qual era sua cara, seu endereço, ou onde ele morava, mas passaram a odiá-lo repentinamente.

Dias depois a administração de maneira burocrática, comemorou a decisão bem sucedida, já que as manifestações, diante da passividade, seriam logo contornadas, como sempre, com oferecimento de alguma vantagem, um afago, um dia de brincadeira, e a vida continuaria dentro das tradições e dos costumes sem o perigo de conhecer outros mundos e trazer novidades que pudessem mudar a organização estabelecida – uma ameaça para quem possuía o comando das ações.

Tempos mais tarde, por não terem conhecimento do mundo exterior e através dele, poderem desenvolver estratégia de defesa da própria vida da comunidade, com desenvolvimento de instrumentos que pudessem aprimorar o bem- estar coletivo, seres de outros universos passaram a rondar, ocupar e se apropriar do local, inclusive derrubando as matas, povoando o espaço e aprisionando os animais – uma devastação. A cobra Clarissa, voltou ao seu pequeno universo, o lago azul, que nem era azul mais em razão de resíduos agora despejados ali pelos novos habitantes.

A Raposa velha, dizem, que, temendo a morte, emprenhou na floresta e ali terminaria seus dias como uma raposa comum, outros dizem que fora devorada por predadores.

 E aqueles que restaram, agora escravizados e vigiados, os mais novos, alunos, nos finais das tardes e início da noite, olham para mar e ouvem um canto, indefinível, indecifrável que domina o espaço por alguns minutos e enche de luz os corações e mentes, seguido de um bater de asas - dizem que é o canto do pássaro branco de olhos aguçados como os da águia e voos rasantes como os do falcão, para lembrar a todos que o pensamento é livre. Em sua homenagem, passaram a chamar esse momento marcante de literatura.

Sequencialmente, no alto da mata densa, ou do que restou dela, nasce a lua cheia e de dentro dela ressurgem dois olhos grandes e solitários, seguidos de um uivo em forma de lamento – É o Lobo Guará. Olham todos assustados para o céu azul em busca de apoio, e nas nuvens brancas em letras garrafais, quem teve discernimento pode ler “O pensamento é livre, e é preciso voar para a eternidade, além dos voos rasteiros que aprisionam a alma em horizontes curtos."

 

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