O Cheiro e os sons de Antigamente
Contos | 2025 - JULHO - Noites de inverno: poemas contos e crônicas à beira do fogo | Gilmair Ribeiro da SilvaPublicado em 08 de Junho de 2025 ás 12h 28min
Seria um dia como qualquer outro. Como há vinte anos, caminhava lentamente, as mãos afundadas nos bolsos da calça, seguindo pelo longo trajeto de cerca de cinquenta minutos, percorrendo a avenida que atravessa a cidade e a conecta, por extensão, a um município vizinho. O destino era a escola pública.
A chuva fina, escorrendo pelos cabelos, era, inconscientemente, uma flecha que feria os labirintos obscuros da alma, onde jaziam adormecidos os desejos inconfessáveis. Despertava lembranças soterradas, trazendo à tona uma memória afetiva que há muito se escondia nas entrelinhas do tempo.
Caminhando por um trecho de estrada reta como uma vereda solitária, passou pela ponte do rio, ladeada por uma pequena comunidade construída nas proximidades da área de preservação à beira do riacho Quilombo. Ali, contrastando com o restante da cidade, pássaros barulhentos cortavam o silêncio e anunciavam o amanhecer.
Avistou, ao longe, a mulher de pele amorenada que se aproximava do topo da subida. Tinha cabelos longos e esvoaçantes, embalados pela música do vento, o andar em ritmo de dança.
Logo reconheceu: era ela.
Apertou o passo, quase correu, e, como na primeira vez, sentiu seu cheiro — uma mistura de flores e perfumes, que despertava seus instintos mais primitivos. O aroma envolvente percorria sua pele, como a ponta de uma língua ofegante, causando arrepios e um estremecimento incontrolável, dominado pelo desejo explosivo
Talvez não fosse exatamente isso, mas sim uma sensação inexplicável.
Aproximando-se, e antes que ela se virasse para conferir a identidade de quem a seguia, disse, de maneira educada:
— Você não deixaria um pobre poeta solitário abandonado ao relento.
— Que susto, meu Deus! É você mesmo, Marcus! E ordinário como sempre, com pequenos gestos, poesia e sedução.
Como se vivesse um momento de vertigem, viu-se na saída da escola, voltando para casa. Aguardando os demais alunos se distanciarem, duas meninas cúmplices o ladeavam e faziam cobertura para que pudessem dar as mãos e depois se beijarem atrás de um ônibus estacionado na rua de terra batida.
O instante do beijo era a ocasião mais inspirada e esperada, quando a respiração acelerada denunciava os seios rijos dela, dois dedos em riste a intimá-lo. Era o início do ensino médio.
Ao final do ano letivo, por motivo de mudança dela para outra parte da cidade, o sonho foi interrompido. Passaram a estudar em escolas diferentes e, então, deixaram de se encontrar ou mesmo se ver. Foram anos de agonia e saudade.
Mas agora estava ali, caminhando ao lado dela, debaixo do guarda-chuva, pela avenida de tantas histórias, e poderia reviver vinte anos de saudade e medo também. Era como sair de um sonho e dar as mãos a um poema encarnado.
— Então... tem visto que ainda sou o mesmo, Cecília!
— Sei não... — respondeu com um alerta. — Moro na próxima rua, descendo a segunda casa à esquerda. Você não pode continuar embaixo do meu guarda-chuva, por motivos óbvios, para não me criar problemas. Mas valeu a conversa.
Tendo revivido em instantes os cheiros e os sons de antigamente, sentiu que não poderia perdê-la mais uma vez – Para empre!
De repente... Um susto. Três batidas na porta:
— Está morando no chuveiro... Pensei até que tivesse acontecido alguma coisa!