Pombos Canalhas (uma filosofia sobre altura, fezes e poder)

Prosa Poética | Carlos Roberto Ribeiro
Publicado em 16 de Maio de 2025 ás 09h 45min

Há um fio entre o céu e o chão. Literal. Um cabo de energia que corta a paisagem como se dividisse o mundo em dois: o que rasteja e o que sobrevoa.

 

É nesse fio que eles se reúnem.

Os pombos.

Imóveis, mas não inertes.

Silenciosos, mas em plena assembleia.

Eles observam tudo — e nos ignoram ao mesmo tempo. Há algo de aristocrático neles, como se tivessem compreendido um segredo do mundo que nós, humanos de asfalto, esquecemos.

 

Outro dia, durante minha caminhada matinal, no alto da Ilha Porchat, ouvi.

Não com os ouvidos. Com aquele tipo de escuta que só se abre quando o corpo caminha e a mente paira.

Percebi que não eram apenas pássaros.

Eram juízes.

Eram meninos travessos.

Eram filósofos decadentes, jogando granadas brancas no tecido social.

 

Riam, zombavam, disputavam alvos.

Pombos jovens, talvez. Pombos velhos, talvez também.

Mistura de inocência e estratégia. De natureza e crueldade.

 

— A vida é uma mira, dizia um deles, e só quem erra sabe o quanto dói ser visto.

— Escolham bem os alvos. Nem todo humano merece o peso das nossas vísceras.

 

Uma senhora passou.

E os canalhas se calaram.

Um deles abriu as asas como se fosse um gesto de honra.

Não lançaram nada.

Respeitaram sua lentidão, seu véu branco de cabelos.

Estranho código de ética, pensei.

 

E então compreendi:

eles também têm suas regras.

O caos nunca é tão caótico quanto parece.

Até na sujeira, há escolhas.

 

Quantas vezes nós, criaturas de chão, também lançamos nossos excrementos — mas invisíveis: julgamentos, indiferenças, pressas, ironias, pequenas mortes em forma de palavras?

Quantos alvos acertamos todos os dias, sem mirar?

 

Os pombos, ao menos, não disfarçam.

Estão lá, altos, sujos, e autênticos.

Assumem a autoria de cada bomba lançada.

Nós não.

 

E ainda que me passem ileso por ora, sei:

um dia serei escolhido.

E talvez mereça.

Não pelo que fiz. Mas por tudo que ignorei quando achava que caminhava sozinho sob fios vazios.

 

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